"O Inconsciente Político", do Fredric Jameson
Ano passado, eu tinha escrito
um texto (em duas partes) sobre o Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio, do Jameson. Mas o Pós-Modernismo é uma aplicação ampla da metodologia que ele
formulou em O Inconsciente Político: a Narrativa como Ato Socialmente Simbólico, de 1981. Aqui, eu vou tentar
explicar o que e essa metodologia, e compará-la com outras
abordagens marxistas sobre a literatura, principalmente a estética
do Lukács.
A questão principal do livro, elaborada
principalmente no primeiro capitulo, o programático "A
interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico",é a
da posição do marxismo entre os diversos métodos de crítica
cultural em conflito. A solução dada pelo jameson é brilhante,
e tudo o mais no livro vai decorrer dela: as várias formas de
abordagens críticas (psicanalítica, formalista etc) pressupõem a
formação, durante a história, dos seus campos
interpretativos especializados - e essa formação só pode ser
compreendida dentro de uma teoria da história, o marxismo:
A defesa de um insconsciente político propõe que empreendamos
justamente essa análise final e exploremos os múltiplos caminhos
que conduzem à revelação dos artefatos culturais como atos
socialmente simbólicos. Ela projeta uma hermenêutica oposta às
já enumeradas, mas o faz, como veremos, não tanto através
do repúdio às descobertas das outras, mas através da
demonstração de sua primazia filosófica e metodológica sobre os
códigos interpretativos mais especializados, cujas revelações
são estrategicamente limitadas tanto por suas situações de origem
quanto pelos modos estreitos ou locais pelos quais constroem ou
estabelecem seus objetos de estudo.
Antes
de começar a
mostrar essa articulação feita pelo marxismo, o autor precisa
passar pela polemica dentro da filosofia marxista sobre a
questão da causalidade. É uma polêmica importante, que surgiu
dentro da crítica às concepções mecanicistas sobre arte do
período stalinista (por exemplo, a obra de um autor era vista
como a “expressão” da posição de determinada classe social e, portanto,
era considerada esteticamente progressiva ou reacionária por causa
disso). Então, o Jameson usa os conceitos althusserianos de
causalidade mecânica, expressiva e estrutural e mostra qual a
aplicabilidade de cada um dentro da crítica.
Nessa parte,
ele mostra uma parte interessantíssima da historia da hermenêutica, que é
o nascimento da disciplina, através da interpretação da Bíblia
pela teoria das quatro leituras (literal, alegórica, moral e
anagógica), e mostra como o nível anagógico foi uma forma embrionária
de leitura política (a leitura do ponto de vista da história da
salvação).
Toda essa discussão sobre a causalidade serve
para o Jameson introduzir a sua forma de trabalhar com o conceito de
mediação (“a forma pela qual a filosofia dialética e o próprio
marxismo têm formulado sua vocação para romper com os
comportamentos especializados das disciplinas burguesas") e
estabelecer a visão de que a mediação não deve necessariamente se
resolver em homologias entre os diferentes níveis (o real problema
da causalidade expressiva
althusseriana).
Como forma de crítica
historicizante das homologias, ele usa o retângulo semiótico de Greimas (eu nunca tinha ouvido falar antes), dialetizando o seu
formalismo e transformando-o no índice do fechamento ideológico das
possiblidades históricas em determinada obra (como ele vai fazer na
análise de A solteirona, de Balzac, no capítulo 3).
No
final dessa parte, ele faz um diagnóstico dos conflitos entre
Althusser e Lukács, que eu vou deixar para o final, quando
eu for comparar Jameson e Lukács.
Na parte seguinte, ele
mostra os dois pólos entre os quais oscila a hermenêutica, o
primeiro sendo o da crítica ética (em termos das motivações e
atitudes do autor, e como ele as elabora nas obras), sendo que,
para o Jameson, a forma dominante da crítica ética no século XX é
a psicanalítica; e o segundo sendo a crítica mítico-teológica, que ele exemplifica através da obra de Northrop Frye sobre o
significado do romance.
Depois dessa passagem, ele
começa a elaborar o instrumental marxista para o tipo de crítica
que supere essas formas locais e parciais. Ele retoma o conceito
de mediação, que passa a ser filtrada (para evitar as
homologias) pelo ideologema ("a menor unidade inteligível dos
discursos coletivos essencialmente antagônicos das classes sociais"). Um
exemplo de ideologema, que ele dá no capitulo sobre Gissing, mas que
seria melhor mostrar logo aqui pra exemplificar o conceito, é o de
ressentimento,ou seja, o discurso de que o
ressentimento é a causa dos protestos da classes dominadas.
O ideologema não aparece diretamente, e sim é elaborado dentro de
uma estratégia de contenção, que são os recursos (intelectuais
na filosofia, mas formais na literatura) que fecham o horizonte
ideológico da obra. Além disso, o ideologema aparece somente
no primeiro nível da análise proposta pelo Jameson. Se todo texto é uma elaboração sobre as contradições sociais, inclusive as
que criam campos “locais” (individuo, família, nacionalidade etc), existem três níveis de contradições, a
saber
- o nível social imediato, que não aparece diretamente, e sim através dos ideologemas; as contradiçôes sociais aparecem
nesse nível como antinomias, que é função da obra explorar;
- o nível das classes sociais em luta. Nesse nível,
a
metodologia do jameson se abre ao estudo das culturas subalternas,
porque o discurso da classe dominante pressupõe o discurso das
classes dominadas; é a polifonia estudada por Bakhtin. Aqui, mais uma
vez, o conflito de classes quase nunca aparece em sua
forma nua, na maioria das vezes, está expresso nos termos do
código-mestre da formação social da época (Jameson usa o exemplo
do cristianismo no período da revolução inglesa), mesmo que a
unidade seja dada em termos de um modo de produção comum;
- o último nível é o mais alto, porque trabalha com a coexistência
entre vários modos de produção diferentes,e tem como horizonte último a história da humanidade como um todo. Aqui, os
conflitos se dão em termos da ideologia da forma (ou seja, como
cada forma literária específica coordena as contradições entre os
vários modos de produção em seu conteúdo - aqui entram os
conceitos, de Hjemslev, de conteúdo da forma e forma da expressão ). É
nesse horizonte, por exemplo, que ele vai analisar O Morro dos Ventos Uivantes, no capítulo 2 (de forma insatisfatória, na minha opinião), e em que ele vai falar do potencial utópico
contido em toda obra de arte, no último capítulo.
O capitulo 2 é um ensaio sobre os gêneros literários, usando
como fio condutor o conceito de romanesco. Segundo ele
o
valor estratégico do conceito de gênero está para o marxismo na
função mediadora da noção de gênero, que permite a
coordenação da análise formal imanente do texto individual com a
perspectiva duplamente diacrônica da história das formas e da
evolução da vida social.
Depois de fazer um pequeno esboço
de por que o conceito de gênero se enfraqueceu na pós-modernidade,
através da ruptura do pacto tácito entre autor e público, causada pela
penetração da lógica capitalista em toda a cultura, ele começa,
novamente, a historicizar as duas formas dominantes de crítica
genérica contemporânea: a semântica (ex: Frye) e a estrutural
(ex. Propp), para mostrar como se articularam historicamente as
noções de herói e sujeito, usadas, respectivamente, por
um e pelo outro.
Depois, começam os ensaios sobre
Balzac, Gissing e Conrad, em que ele vai aplicar o método que
ele expôs.
Em A solteirona e La rabouilleuse, de
Balzac, ele vai mostrar como nessas obras - escritas antes do
realismo “travar” o narrador onisciente no centro do romance - se
opera o fechamento do horizonte, ilustrado pelo retângulo de Greimas: o
horizonte histórico também está fechado para Balzac, um legitimista, e
as obras colocam os dilemas históricos reais
através dos conflitos entre os personagens-tipo balzaquianos.
No
capítulo sobre Gissing, ele mostra como é possível, dentro
do naturalismo, resolver o problema de um sujeito “exterior”
que, mesmo assim, consegue ter um ponto de vista sobre as
classes subalternas, através da personagem da filantropa, e como
essa solução formal se liga com o ideologema do ressentimento.
Já
o capítulo sobre Conrad é o que eu tive mais dificuldade de
entender, porque exige um conhecimento da obra dele que eu não
tenho (nunca li nada dele). Do pouco que eu entendi, vi que ele mostra
dois elementos bem modernos na obra do Conrad: a écriture, ou
seja, aquele estilo modernista de livre associação, e a
articulação (até pós-moderna) entre a alta literatura e a
literatura de massa, no caso, os romances de aventura (o jameson
fala em quatro tipos de literatura de massas: essa, a ficção
científica, os romances policiais e os góticos). Ele fala do
mar como elemento de contenção (deslocando os conflitos “para
fora” da sociedade) e do ideologema fundamental da obra dele como
sendo, surpreendemente, o da religião da estética, tão
comum no final do século XIX (simbolismo, por exemplo), e como
ele aparece no estilo de Conrad e se explicita indiretamente no episódio
do quase naufrágio dos peregrinos para Meca.
O último capítulo, o 6, aparece a parte que eu vejo
como a mais problemática do Jameson, que é a procura de elementos
utópicos em todas as formas de arte, inclusive nas mais degradadas,
invertendo a famosa tese do Walter Benjamin ("toda obra de cultura é, ao
mesmo tempo, uma obra de barbárie). Parece que ele cai no tipo de
dialética abstrata que ele tanto critica através do livro, colocando
uniformemente esse elemento utópico por toda parte, por exemplo (em Reificação e Utopia na Cultura de Massa), em filmes como O Poderoso Chefão e Tubarão (!!!).
Para analisar as nostalgias de reconciliação presentes em obras culturalmente reacionárias, eu prefiro a tese do Zizek, em
O Mais Sublime dos Histéricos,
em que ele fala da fantasia primordial do fascismo como sendo da
harmonia de todo o corpo social, uma fantasia análoga à de que existe a
relação sexual.
Jameson e Lukács
Depois de falar sobre o livro, só umas palavrinhas sobre as diferenças
entre eles (eu não saberia falar agora sobre o Adorno, mas seria um tema
interessante para escrever depois).
Antes disso, vou copiar aqui o trecho em que o Jameson contrasta Althusser e Lukács:
1) o problema da respresentação e, particularmente, o da representação
da História: como já se sugeriu, este é essencialmente um problema
narrativo, uma quest]ao da adequação de qualquer moldura narrativa em
que a História poderia ser representada; 2) o problema correlato das
"personagens" da narrativa histórica ou, de maneira mais precisa, o do
status do conceito de classe social e de sua disponibilidade como um
"sujeito da História" ou principal ator dessa narrativa histórica
coletiva; 3) a relação entre a práxis e a estrutura, e a possível
contaminação do primeiro desses conceitos pelas categorias da ação
puramente individual, em oposição ao possível aprisionamento do segundo
desses conceitos em uma visão em última análise estática e reificada de
um "sistema total"; 4) o problema mais geral, derivado desse último, do
status do sincrônico e sua adequação enquanto moldura de análise; ou,
correlativamente, da adequação da visão dialética mais antiga da
transformação diacrônica e da periodização, mais notoriamente no relato a
ser feito da transição de um modo de produção a outro; 5) a
questão correlata do status de uma categoria não menos central para a
dialética clássica que é a mediação, ou seja, a contradição, e
sua formulação na nova moldura estrutural ou sincrônica (uma categoria
que, é preciso insistir, é radicalmente distinta das categorias
semióticas da oposição, antinomia ou aporia); 6) e, finalmente, a noção
de uma totalidade, termos que Althusser continua a empregar, procurando
sempre diferenciar radicalmente seu conceito de uma totalidade
verdadeiramente estrutural do da antiga totalidade expressiva, que passa
por ser a categoria organizadora do idealismo hegeliano e também do
marxismo hegeliano (Lukács, Sarte).
Mas o contraste mais importante é entre a crítica cultural jamesoniana e
a estética lukacsiana. No Prefácio, em que ele explica o que
O Inconsciente Político não é, ele diz
Portanto, se este livro não propõe uma estética política ou
revolucionária, ele igualmente pouco se preocupa em levantar mais uma
vez os problemas tradicionais da estética filosófica: a natureza e
função da arte, a especificidade da linguagem poética e da experiência
estética, a teoria do belo, e assim por diante. Entretanto, a própria
ausência desses problemas pode servir como comentário implícito a
respeito deles; tentei conservar uma perspectiva essencialmente
historicista, na qual nossas leituras do passado dependem de maneira
vital de nossa experiência com relação ao presente e, particularmente,
das peculiaridades estruturais daquilo que por vezes é chamado de societé de consommation
(ou de momento "desacumulativo" do monopólio tardio, ou consumismo ou
capitalismo multinacional), aquilo que Guy Debord chama de sociedade da
imagem ou do espetáculo. O problema é que em uma sociedade como essa,
saturada de mensagens e de experiências "estéticas" de todos os tipos,
as próprias questões referentes a uma estética filosófica mais antiga
precisam ser radicalmente historicizadas, podendo-se esperar que se
tornem irreconhecíveis nesse processo.
Quanto à ideia do fim da autonomia, que cancelaria ou tornaria irreconhecível a estética, na primeira parte do texto sobre o
Pós-Modernismo
eu argumentei que decorre de uma concepção, diferente da do Mandel
apesar de se dizer baseada nele, de que o capitalismo conseguiu controle
total sobre todas as esferas da sociedade.
Nisso, eu vejo o segundo grande problema do Jameson, que fica evidente na forma em que ele vê
O Morro dos Ventos Uivantes
como uma obra que articula a monetarização da economia rural. Não sem
influência do historicismo absoluto, ele necessariamente precisa tratar a
arte como uma articulação superestrutural. Bem diferente da estética
lukacsiana, inspirada em Goethe, em que a arte é uma forma complementar à
ciência de compreender o mundo. Justamente por isso, a estética do
Lukács permite ver a arte como algo transistórico, defender a
necessidade da sua autonomia, e dar uma profundidade maior às obras do
que intervenções ideológicas no discurso.